
- O Brasil tem uma das mais altas prevalências de demência no mundo
- 2,4 milhões de brasileiros vivem com demência
- Custo anual supera 100 bilhões de reais
- Sem um Plano Nacional de Demências, custos aumentarão
- A aprovação de um projeto de lei pode mudar o cenário
- Veja 10 motivos para a aprovação urgente do PL 4.364 na Câmara dos Deputados
2024 começa e precisamos falar sobre os desafios da nossa sociedade e, principalmente, dos caminhos para superá-los. O Brasil passa por uma crise social no cuidado de pessoas e famílias que vivem com demência. Dados mais recentes dos Relatórios Nacionais sobre as Demências no Brasil – RENADE-2023 (parceria do MS com UNIFESP e via PROADI-SUS), liderados pela Professora Dra. Cleusa Ferri, apontam que pelo menos 2,4 milhões de brasileiros vivem com demência, sendo a Doença de Alzheimer a causa mais comum. As estimativas para os próximos anos chegam a assustar, tendo em vista os diversos fatores de risco presentes nos adultos de meia-idade no Brasil (hipertensão, diabetes, obesidade, sedentarismo e baixa escolaridade). Em 2030, facilmente superaremos a marca de 7 milhões de brasileiros com demência ou comprometimento cognitivo leve. Pouco se fala, mas o país tem uma das maiores prevalência de demência em todo o mundo! Sobre os custos relacionados à demência, o mesmo relatório aponta que ele é de pelo menos 100 bilhões de reais ao ano – sem contar o impacto do adoecimento dos cuidadores. Eles são divididos entre custos diretos, nos quais o SUS é envolvido, e no cuidado informal, no qual principalmente as mulheres familiares executam de maneira invisível e com escasso apoio.
Falar em crise não é exagero ou apelo literário: segundo o RENADE, cerca de 70% dos casos de demência no Brasil não são sequer diagnosticados! Ou seja, são pessoas e famílias que não tem o mínimo: a palavra de um médico dizendo o que está acontecendo e quais os cuidados são necessários. Importante sempre lembrar que sem o diagnóstico, uma pessoa idosa com demência, ou com a fase anterior chamada de comprometimento cognitivo leve, fica exposta a diversas formas de violência, passando pela patrimonial, pela psicológica, pela física e, até mesmo, por erros médicos. A crise social das demências é marcada pela inexistência de uma política pública de saúde ou de assistência social para o cuidado das pessoas e das famílias que vivem com demência em nosso País – não encontramos estratégias para a garantia do diagnóstico, acesso ao tratamento adequado e suporte aos familiares. Essa crise social esconde-se nos muros dos lares geriátricos, onde residem milhares de idosos carentes – a maior parte com algum tipo de demência –, com cuidados precários.
Esse cenário de crise contrasta com os avanços recentes no cuidado em Alzheimer e com a revolução tecnológica que se aproxima. Há novos exames que já conseguiram comprovar sua utilidade clínica e alguns que, provavelmente, em breve atingirão esse patamar; enquanto ao tratamento, mesmo controversos pelo risco e benefício limitado, medicamentos com foco na remoção das placas amiloides – lesões típicas da doença – foram aprovados em outros países. E essa revolução tecnológica resultará numa dificuldade ainda maior para a sociedade em lidar com a crise das demências, uma vez que os custos serão altíssimos; um dos medicamentos aprovados nos Estados Unidos chega a custar mais de 100 mil reais e demanda uma série de ressonâncias magnéticas do cérebro – recurso que no SUS é bastante limitado. Para os próximos anos, caso não tenhamos um Plano Nacional de Demências, como preconiza a OMS desde 2017, dificilmente escaparemos de uma judicialização crescente – fenômeno comum em saúde pública, que promove ainda mais desigualdades e que desorganiza qualquer política pública. Se algo diferente não for feito pelo SUS em relação às demências em 2024, os custos serão, inevitavelmente, ainda maiores.
Um caminho possível para mudarmos esse cenário de crise é a via legislativa, através de um instrumento legal que provoque o Poder Público a agir e dê as diretrizes para elaboração de uma política pública adequada. Após a aprovação no Senado em 2021, com a relatoria do Sen. Romário Faria (PL-RJ), e nas comissões necessárias, tramita na Câmara dos Deputados o PL 4.364/2020, que institui a Lei Nacional de Cuidado Integral em Alzheimer e outras demências, de autoria do Sen. Paulo Paim (PT-RS). O texto encontra-se na fase final de tramitação no plenário da Câmara, com Requerimento de Urgência assinado por parlamentares de todos os campos políticos. Nesses anos de desenvolvimento do PL, através de discussões, houve um crescente engajamento da sociedade civil, como as ONG’s ABRAz e a FEBRAz, além de sociedades médicas de especialidades, em especial a Sociedade Brasileira de Geriatria e de Gerontologia e a Academia Brasileira de Neurologia. O Conselho Nacional de Saúde também se manifestou em apoio ao PL. Na esfera internacional, há o apoio direto da Alzheimer’s Disease International (ADI), maior entidade global de advocacy no cuidado em demências. O Ministério da Saúde esteve presente na Audiência Pública realizada em outubro na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal e mostrou apoio à causa; além ter contratado, via PRO-ADI, a realização do Relatório Nacional de Demências (RENADE), que traz um amplo diagnóstico situacional e nos permite dar os primeiros passos rumo ao Plano Nacional de Demências. (link para o PL: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2307641)
A sanção da Lei pelo Presidente não terá o poder mágico de resolver todos os problemas relacionados à crise do cuidado em demências no Brasil, porém ela representa um marco importante: será uma mudança para a busca de melhor qualidade de vida para as pessoas que vivem com demência hoje, seus familiares, e, importante ressaltar, para aquelas pessoas que desenvolverão demências nos próximos anos e seus familiares. O Brasil, devido ao SUS e a seus diversos instrumentos que garantem uma capilaridade e eficiência na atenção primária, tem amplas condições de ser uma referência do cuidado em Alzheimer e outras demências na América Latina.
Com a criação de um Plano Nacional de Demências podemos mudar esse cenário em poucos anos. Poderemos melhorar o diagnóstico, os cuidados pós-diagnóstico, o acesso aos medicamentos já aprovados pela ANVISA e falar em algo que é possível: prevenção de Alzheimer e outras demências em larga escala.
Além das características do SUS, o que me traz otimismo em relação a conseguirmos melhorar o cuidado em demências são as pessoas capacitadas e dispostas. Ao longo dos últimos anos, em audiência públicas e em reuniões, participando de discussões com as ONGs e da análise do RENADE, conversei com muitas referências no cuidado de pessoas com demência no Brasil e representantes de familiares cuidadores. Há pessoas extremamente preparadas e verdadeiramente dispostas a contribuir com o Governo Federal na elaboração de uma política pública justa e eficiente.
Elenco 10 motivos que tornam urgente a aprovação do Lei Nacional de Cuidado Integral em Alzheimer (PL 4.364/20):
1) As demências não podem ser consideradas doenças raras e, por isso, não podemos ignorar suas especificidades e abarcá-las numa ação destinada a condições de menor prevalência populacional; os dados epidemiológicos mostram que até 14% da população com mais de 60% apresenta ou demência ou comprometimento cognitivo leve no Brasil;
2) O Brasil tem compromisso com a Organização Mundial de Saúde para elaborar um Plano Nacional de Demência até 2025; há países na América Latina que já conseguiram apresentar seus planos, sendo que nosso país, devido ao seu forte sistema de saúde, deveria estar na vanguarda regional;
3) A Lei ajudará a sociedade a dividir a responsabilidade no cuidado de pessoas com demência, peso que recai exclusivamente sobre as famílias no modelo atual de omissão do Poder Público;
4) É urgente a preparação da sociedade para a incorporação de maneira justa e com equidade das novas tecnologias relacionadas ao diagnóstico e ao tratamento da Doença de Alzheimer; dento do cenário de crescente judicialização na saúde e a ausência de uma política pública que oriente a sociedade nesse tema, é provável que o Sistema de Saúde arque com custos excessivos e desproporcionais já nos próximos meses;
5) A lei poderá facilitar a construção de uma política pública permanente, de caráter participativo, que olhe para os cuidadores, que seja independente de mudança de governos e que tenha financiamento específico;
6) O cuidado em demências no Brasil é uma causa silenciada e até invisível; há limitação para que as pessoas que vivem com demência e seus familiares sejam ouvidos e suas demandas possam ser incluídas em esferas de participação popular ou que consigam mobilizar a agenda pública;
7) O PL propõe princípios para que a futura política construída esteja de acordo com as boas práticas de cuidado, inclusive com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde de 2017;
8) A aprovação e a sanção da Lei Nacional de Cuidado Integral em Alzheimer ajudarão a manter os esforços da sociedade civil, que juntará forças com o Poder Público para a elaboração participação do Plano Nacional de Demências;
9) O PL 4.364/20 transformará a assistência a pessoas idosas carentes que residem em Instituições de Longa Permanência (ILPI), pois propõe que essas pessoas sejam atendidas de maneira especial pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), através de programas de amparo;
10) A melhor forma encontrada pela Organização Mundial da Saúde para que um país elabore políticas públicas para demências é através de um Plano, com elementos de boa governança, e esse aspecto é central no Projeto de Lei apresentado;
É um desafio complexo e que, ao ser negligenciado, causa ainda mais dor para tantas pessoas. O Brasil pode olhar para o que outros países já estão fazendo, inclusive aqui na América do Sul, e tomar a decisão de começar a mudar esse cenário. A sociedade civil espera que, nas próximas semanas, o presidente da Câmara Dep. Arthur Lyra, que tem dado celeridade à causa, coloque o PL 4.364/20 em votação no plenário.
Leandro Minozzo,
Médico geriatra, professor de medicina da Univ. FEEVALE, membro da ABRAz, autor do livro “Como Enfrentar o Alzheimer e Outras Demências: um Guia para a Construção de Políticas Públicas no Brasil” (Alzheimer360, 2018) e “Como Cuidar de Um Familiar com Alzheimer e Não Adoecer” (Sulina, 2022)